A magia do cinema

Por esta altura do ano as atenções estão normalmente concentradas em volta da maior festa da sétima arte, entre nomeados, premiados e vencidos.

Os media vendem imagens de glamour, vedetas, passadeiras vermelhas, e toda uma cenografia a condizer com esta arte que, todavia, é muito mais do que isso. É antes de mais a arte conciliadora, a que agrega todas as outras, e depois é todo um mundo. Retratando a realidade, ou pura ficção, o cinema é vida, é sonho e realidade, em simultâneo, com som, luz, imagem, e fantasia. Violência e horror também, porque assim é o nosso mundo.

Nem sempre o cinema esteve acessível a todos, e bem sabemos como nas últimas décadas, a evolução tecnológica o tornou acessível às massas. Mas o cinema, desde que surgiu e ao longo de várias gerações,  que vem ocupando um lugar de destaque no mundo do entretenimento. Na minha vida tem o seu lugar, um lugar importante.

É habitual associar-se o interior alentejano, especialmente do pré-25 de abril, a iliteracia, pobreza, exploração, poucos recursos e fraco desenvolvimento. Era tudo isso, sem dúvida. Mas, se há umas décadas atrás não havia ao nosso dispor a imensurável diversidade de formas de entretenimento e lazer que  hoje temos, havia algo fundamental e que escasseia hoje nas nossas aldeias: vida, lugares habitados, pessoas. Pessoas dinâmicas, interessadas, que criavam, que se divertiam e divertiam os outros/as, que brincavam, que sociabilizavam, de formas que hoje já quase desapareceram nesses lugares, e que mitigavam a escassez e o acesso a bens de primeira necessidade.

Bandas de música, ranchos folclóricos, grupos de teatro, bailes, festas populares, feiras, nada faltava no interior.  Tanto as tradições religiosas, como as festas pagãs, eram cumpridas a rigor e com muita imaginação. Organizavam-se presépios vivos, desfiles de carnaval, bailaricos semanais ao som do acordeão (mais tarde surgiriam as matinés com gira-discos e os grupos de baile), grandes festas anuais, em que não faltavam quermesses, bandas de música, vacadas, jogos de futebol, bailes e concertos, um sem número de atividades que envolviam toda a comunidade, e que hoje custa a crer terem ocorrido nos lugares despovoados em que se transformaram as nossas aldeias.

Parece quase inacreditável, mas sim, também havia cinema. Aos fins de semana, a carrinha do projeccionista ambulante era esperada com muito entusiasmo. Antes de preparar a sessão, no salão de festas da Casa do Povo, o som dos megafones, habilmente presos na carrinha, anunciava a toda a aldeia que ali estava, à disposição de todos, a estreia mais recente, o maior sucesso de bilheteira dos últimos tempos. Logo que surgia aquele som inconfundível,  a criançada suspirava de alívio. Sim, porque volta e meia, e para grande desalento de miúdos e graúdos, a velha carrinha não chegava ao destino para cumprir a missão.

Fosse matiné, ou sessão nocturna, o pano do palco servia de projetor. A máquina  de projeção era colocada num salinha junto ao bar, que tinha uma pequena janela de frente para o palco, e se adequava plenamente à função. Cadeiras eram estrategicamente  alinhadas no salão em frente à tela. Nada era deixado ao acaso.  Não havia pipocas, três dimensões, ar condicionado ou o conforto das cadeiras acolchoadas das salas modernas, mas garanto-vos que era muito, muito empolgante.

O interesse pelo cinema não se explica, mas o meu sofreu influência da minha mãe, já que também ela foi, durante toda a sua vida uma apaixonada da sétima arte. Não tendo ido à escola, e sabendo apenas juntar uma meia dúzia de letras, ela conseguia compreendia ao pormenor o enredo de qualquer filme estrangeiro mesmo sem conseguir ler as legendas. Era impressionante, extraordinário. Cedo percebi essa sua paixão e passou a ser minha tarefa, quando já lia com alguma desenvoltura, ler-lhe as legendas dos filmes estrangeiros. Lamentavelmente, interrompi essa boa prática quando fiquei mais crescida. Alguns filmes começaram a ser mais ousados, e eu passei a ter vergonha de algumas cenas, evitando assim vê-los com ela e inventando desculpas para não ter de lhe ler. Que parvoíce, o quanto me arrependo!! Lamento tanto ter interrompido essa boa prática, como lamento não a ter ensinado a ler bem.

Contava-nos ela muitas vezes, como passava (em solteira, e quando muitos dos filmes que chegavam à aldeia ainda eram cinema mudo) os fins de semana ao rabisco (andar ao rabisco significa apanhar restos que ficavam pelos campos) da azeitona, de lenha, de pinhas, de forma a reunir o dinheiro suficiente para uma sessão de cinema. Tempos difíceis que hoje não sabemos avaliar, mas que merecem ser relembrados. É importante relembrar, sobretudo para que tomemos consciência  de quão ricos somos hoje.

Um dia, chegou lá a casa a vez de ir ao cinema a sério!! Eu teria eu uns 5, 6 anos, não sei precisar com exactidão e já não posso contar com quem o saberia. O filme: “Música no Coração”. Sucesso admirável por toda a Europa, chegou também às salas de cinema portuguesas. Não sei como, e penso nisso com alguma frequência, porque terá sido muito dispendioso e as dificuldades eram imensas, mas a minha mãe lá arranjou forma de nos levar a Lisboa, ao cinema Tivoli, para ver a “Música no coração”. Tenho uma lembrança ténue, afinal era bem pequena, mas recordo o momento. Associo muita emoção, deslumbramento e sono… O cansaço da viagem, aliado a toda a excitação da experiência, talvez me tenha vencido. Lembro-mo de me levantar do meu lugar, de me sentar nas escadas da sala, junto ao lugar da minha mãe e de ter sono….

Voltei à “Música no Coração” várias vezes ao longo da vida, e de forma excepcional, porque não é meu hábito repetir filmes ou livros por muito que os tenha apreciado. Mas este era, e ainda é, muito especial.

A sétima arte é uma das criações mais perfeitas do mundo do entretenimento.  Por momentos, algumas dezenas de minutos, não apenas os actores vestem outra pele. Também nós, do lado de cá da tela, entramos no enredo e no cenário de forma arrebatadora, sabemos que é ficção, mas sentimos como  real. É por isso que nos assustamos, irritamos, rimos e choramos, vezes sem conta e sem nos darmos conta. A par da função entretenimento, o cinema tem também, ou pode ter, uma função educativa. Pode abrir portas à reflexão, ajudar a eliminar preconceitos e estereótipos…A este propósito recordo com especial carinho um filme que vi bem jovem, e que nunca vou esquecer por dois motivos. Um deles, porque o vi com o meu irmão em Lisboa não sua estreia, e foi o ultimo filme que vimos juntos. O outro, porque era dirigido por uma mulher, Barbra Streisand, que aliava a sua maravilhosa voz, a uma boa interpretação, e a uma temática que despertou em mim uma consciência feminista que eu já tinha e ainda não sabia.

Yentl, de Barbra Streisand

 O cinema esteve também presente no início da minha vida profissional, fortalecendo e consolidando a importância que já tinha. É interessante olhar para trás e compreender as dinâmicas de então.

Temos na cidade uma sala de espectáculos extraordinária onde, no final dos anos oitenta, o cinema ocupava a parte mais importante da sua programação. A gestão do cinema era feita pela autarquia, mas de uma forma peculiar. Existia, dentro da própria autarquia, uma pequena empresa que geria o Cine-Teatro e que era ela própria, por sua vez, gerida por serviços da autarquia. Concretamente pelo serviço onde eu me encontrava, a Divisão Sócio Cultural, recém criada. Os trabalhadores dessa “empresa” eram pagos pela autarquia mas através de uma contabilidade própria, ou seja não eram funcionários /as públicos. Toda esssa organização foi alterada por via de reorganizações administrativas, mas funcionou assim durante algum tempo. Agora, à distância dos anos, já não consigo refazer a dinâmica da organização, mas o mais interessante para mim, era a parte referente exatamente ao cinema. A programação era feita por uma figura externa à autarquia, pelo Arquitecto Machado da Luz. “Filho de Maria José Estanco, primeira mulher portuguesa que se graduou em arquitectura, e de Raimundo Machado da Luz, destacado pintor neo-realista, Manuel Machado da Luz nasceu em Lisboa, a 16 de Março de 1943 e cursou arquitectura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. Iniciou a actividade profissional de arquitectura no atelier do Arq. António Jacobetty após estágio nas obras do Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, do qual resultou um relatório sobre Acústica em Salas de Espectáculos. Arquitecto e quadro da administração pública, Manuel Machado da Luz soube conciliar os imperativos profissionais com as actividades culturais em que se envolveu ao longo de 35 anos, foi crítico, animador e dirigente cineclubista (ininterruptamente ligado ao ABC); colaborador das mais variadas publicações de cinema e cineclubismo (“Boletim” e revista “Cinema”, editados pelo ABC, programas, colectâneas e cadernos os mais diversos); autor de palestras e dinamizador de colóquios; membro de júri de festivais de cinema (I Certame ABC de Cinema de Amadores, 1965, II Festival de Lisboa, 1965, Encontro da Federação Portuguesa de Cinema e Audiovisuais, 1977, Internimas, 1982, Audiovisuais de Lisboa, 1986 e 1988, Cinanima, 1982, Festival de Tróia – Prémio da Crítica, 1985). Integrou o conselho consultor da colecção “Cadernos de Cinema” (Publicações Dom Quixote, 1969-71); orientou o sector de ficção para adultos da editora videográfica Vídeo Crac Filmes (1989-90). Como programador cultural, para além do trabalho de 35 anos no ABC Cine-Clube de Lisboa, integrou a organização dos XVI e XVII Ciclos de Cinema da Casa da Imprensa (1979-1980), além de responsável/co-responsável pela programação de diversas salas públicas da periferia e da província (Cinema Stadium, de Algés, Cine-Teatro Curvo Semedo, de Montemor-o-Novo, Cine-Teatro de Arraiolos, Cinema Municipal de Redondo), desde 1977 até 1997. [http://abc-cineclube.blogspot.pt/2007/10/colquio-de-homenagem-manuel-machado-da.html]

Todas as semanas o Arquitecto Machado da Luz nos enviava, por correio, a programação para o Cine-Teatro Curvo Semedo. E com ela, as fichas técnicas dos filmes com que elaborávamos um folheto, que seguia depois para a gráfica para composição e impressão. O folheto continha o nome e a ficha técnica de cada filme , e nos tínhamos de criar uma frase publicitária para cada filme. Depois de pronto e impresso, o folheto era distribuido pela cidade, publicitando assim, semanalmente, a programação da sala. Sem recurso ainda a computadores, este era um processo que fazíamos com o maior empenho e intensa admiração pela arte do cinema. O envolvimento neste serviço foi uma experiência muito gratificante, tornou mais forte o meu interesse, aguçou mais a minha curiosidade e permitiu alargar um pouco os meus conhecimentos.

Óscares  2018

Dos filmes concorrentes aos Óscares deste ano vi, até agora, apenas três filmes:

The Post, de Steven Spielberg

Dentro da qualidade  a que o realizador já nos habituou, The Post é um grande filme que nos traz os bastidores da comunicação social, e as pressões inerentes a esta profissão.  Questões de ética, concorrência, o direito à verdade, o papel da mulher na sociedade da época, são magnificamente interpretados por nomes que dispensam apresentações. Meryl Streep é uma das minhas atrizes preferidas mas impressionou-me mais o desempenho de Tom Hanks.

 

A Forma da água, de Guillermo del Toro

Passado em plena Guerra Fria, combina de forma extraordinária a fantasia, o romance, o drama e aventura. É um daqueles filmes que nos vai prendendo no desenrolar da ação, e que nos obriga a refletir. Fala-nos sobre amar o diferente. O que seria, por si, motivo suficiente para o considerar genial e imperdível. Acresce-lhe porém uma interpretação feminina brilhante.

Lady Bird, de Greta Gerwing

Passado em 2002, época de crise e dificuldades nos EUA, este filme retrata a chegada de uma  garota, espontânea e carismática, à idade adulta. Conflitos familiares e a irreverência da adolescência dominam o filme que nos prende até ao fim com um sentimento de compreensão e um sorriso no rosto.

De entre os três, os mais notáveis são com certeza The Post e a Forma da água. São no entanto muito diferentes na mensagem que transmitem. O amor, seja qual for a sua forma, é intemporal, e o filme do realizador mexicano representa-o de forma brilhante. A liberdade de expressão, o direito à verdade, e toda a controvérsia em volta do atual e polémico Presidente dos EUA, dão um relevo especial a The Post, película que irá com certeza arrecadar algumas estatuetas.

Amanhã saberemos.

 

 

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