O vício Ferrante

Passou há pouco tempo na RTP2 um documentário (A febre Ferrante) muito interessante sobre a misteriosa Elena Ferrante. Dar início a essa viagem também pode ser uma febre, se a entendermos como desejo ardente, mas é sobretudo um desassossego e um vício, diria mesmo, um vício muito bom.

Parece-me que não está disponível na RTP Play, pelo menos tentei encontrar e não consegui, o que é pena. O documentário é da autoria de Giacomo Durzi, e revela a complexidade do universo literário da autora através de testemunhos de críticos, editores, livreiros e autores célebres, entre os quais Roberto Saviano, Elisabeth Strout ou Jonathan Franzen, que discutem a escrita e o sucesso extraordinário de Ferrante.

“Elena Ferrante é o nome por detrás de um dos maiores fenómenos da literatura do século XXI, mas a sua verdadeira identidade é mantida secreta pelos seus editores. A sua popularidade foi desencadeada por uma série de quatro romances passados em Nápoles, que começa com “A Amiga Genial”, de 2011, e prossegue com “História do Novo Nome”, “História de Quem Vai e de Quem Fica” e “História da Menina Perdida”. Simultaneamente aclamada pelo público e pela crítica especializada, a saga transformou-se num tremendo sucesso internacional. Da autora, pouco ou nada se sabe, especula-se que seja mulher, que viva em Nápoles, e que tenha começado a escrever no início dos anos 90.”

Atrasei-me uns anos no meu encontro com Elena Ferrante. Lamento até hoje esse atraso, ainda que de então para cá tenha procurado recuperar o tempo perdido. O que em boa verdade tem sido tarefa fácil, pois após nos embrenharmos na obra de Ferrante, o difícil é sairmos de lá. Como num vício, ficamos presos e queremos sempre mais e mais. A forma como a autora constrói as personagens, como conduz a narrativa, a crueza das relações, do retrato da sociedade italiana, é arte na forma escrita.

Comecei a ouvir falar dela, li na imprensa o que se foi publicando sobre a sua misteriosa existência, mas não me tentou ao ponto de ler de imediato algum dos seus livros.

Mais tarde, lembro-me de estar a comprar livros online, e de ter colocado no cesto, junto com outros livros, A amiga genial. Passado algum tempo, estando a terminar um livro e já a pensar no seguinte, lembrei-me, nem sei bem porquê, que tinha comprado um livro da Ferrante. Fui procurar mas não o encontrei. Também não encontrei nenhum registo nas “minhas encomendas” online que provasse que o tinha realmente comprado. Não sei se foi sonho, se acabei por o tirar do cesto por algum motivo, fica o enigma. Nada que não se pudesse resolver. Comprei-o de imediato e li-o assim que chegou. Não sei se ler é o termo certo, talvez devorar seja mais preciso. Dei assim início à febre, ao desassossego, ao vício, ao desafio emocional, que é a escrita de Elena Ferrante.

Não elegi nenhum livro como preferido porque não os li todos, e também ainda não terminei a tetralogia composta pelos livros: A amiga genial, História do novo sobrenome, História de quem foge e de quem fica e História da menina perdida, mas posso assegurar, pelo que li até agora, que é uma experiência rica, uma leitura fascinante. Elena Ferrante pega-nos pela mão e conduz-nos pelo seu mundo que é tão real como imaginário, que é tão distinto como do quotidiano, e prende-nos a ele numa ambivalência de emoções. A uma escrita fácil e acessível, contrapõem-se questões fraturantes, o revelar de uma violência sistémica que de formas mais ou menos latentes, está entranhada em todas as sociedades.


Entretanto, a Netflix anunciou o ano passado que vai adaptar “A Vida Mentirosa dos Adultos”, publicado em Portugal também o ano passado, a uma série televisiva, à semelhança do que aconteceu com a tetralogia de “A amiga Genial”, que foi adaptada a série pela HBO em coprodução com a televisão pública italiana Rai.

Aguarda-se ansiosamente, desejando que seja um encontro feliz e de sucesso, o da palavra escrita com a magia do écran.

Um pensamento sobre “O vício Ferrante

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